A sociedade que cheira a sovaco

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Mas os portugueses são pequenos mortos carregados de bandos de filhos. Lastimam-se, lamentam-se, queixam-se; só raramente protestam, só raramente se indignam; falam baixo. Raquíticos, supersticiosos, ignorantes, obesos, confundem passado, presente e futuro, embebedam-se, escarram no chão, batem nas mulheres, recriminam-se uns aos outros, investem-se de mitos primitivos, habitam espaços reduzidos em bairros infectos, elevam o som  das rádios para lá de limites suportáveis, discutem futebol toda a semana, crêem na má-sorte, acreditam no milagre de Fátima, amontoam-se, tornam-se patéticos com a modéstia objecta dos seus desejos; voltam a embebedar-se. Ei-los maltratados, agredidos, feridos, arranhados; e resignam-se à ilusória ficção de que, quando contam as suas desgraças, são escutados com reverente compreensão e simpatia. E fazem-no sem pudor. Satisfazem-se demonstrando as suas misérias; até publicamente. Nas bichas dos carros eléctricos, no interior dos autocarros apinhados, no confuso tumulto das carruagens do Metro, odores de suor, de corpos mal lavados, detritos, imundices, fétidos rostos de cadáveres, zangas sem significado, intrigas, vaidades, anedotas, piadas grosseiras, astúcias menores, manhas grotescas. Aos domingos passeiam aos magotes pelos centros comerciais.


(Baptista-Bastos, Um homem parado no Inverno, Lisboa, O Jornal, 1991, p.31)


Os portugueses são um povo de costumes: uns maus, outros piores. Estes costumes, que velhos e novos teimam em manter, são alvo de repulsa por parte dos estrangeiros que por cá passam e pelos portugueses que pugnam pela boa educação.
Baptista-Bastos faz parte deste grupo, dos que se enojam com estes costumes sem jeito, dos que escarnecem dos mesmos e faz um retrato, um tanto sarcástico, deles.
Segundo o autor, basicamente, português é tolo, não protesta, conforma-se com o que há, queixa-se e lamenta-se continuamente, mas em baixo tom para que os de direito não ouçam. A única coisa que querem que todos ouçam é a música que eles escolhem na rádios ou as longas discussões sobre futebol que duram a época inteira. Os portugueses acreditam que falar dos seus problemas os faz adquirir simpatia por parte dos demais. Fazem com que todos os ouçam mas só nos assuntos que não interessam, questões superficiais que não exercitem o pequeno cérebro nem o gordo corpo. Cospem no chão, dizem asneiras, falam calão, agridem, bebem, riem e bebem. Não se preocupam com as figuras que fazem e não são capazes de ter discussões produtivas pois só sabem falar de futebol e passear, ao fim de semana, no centro comercial.
Obviamente estamos perante uma hiperbolizada generalização, e como generalização que é, tem o seu fundo de verdade. Em Portugal, ainda há muito pouca preocupação com a cultura, coma erudição, com a discussão de problemas sociais. Se, no nosso dia a dia, escutarmos uma ou outra conversa de café, de autocarro ou até de claustros, percebemos que quando se fala de política é para dizer mal de x ou y, quando se fala de reformas é para criticar w ou z, quando se discute educação insulta-se a ou b... Porém, quando é hora de agir, quando se é chamado a protestar, a dar opinião, muito dos "ditos" cidadãos (e apenas "ditos", pois para se ser cidadão é necessário exercer cidadania) agem que nem caracóis ou tartarugas: enfiam-se dentro da carapaça e esperam que o perigo passe. Problemas? Alguém há-de resolver. Soluções? Alguém há-de encontrar. Ainda há esperança, com certeza! Há gente que ainda rema contra a maré mas, por enquanto, são poucos, muito poucos para a quantidade de raquíticos que perduram. É a sociedade que temos.

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