Conhecimentos adquiridos

Eu, estudante de um curso de letras, dou por mim sentada num mini-anfiteatro a ter uma unidade curricular (que agora já não se pode dizer cadeira) denominada guionismo, que eu achava que ia ser extraordinária e afinal não foi assim tanto (mas isso dava outro texto), em que me falam da simpatia para com o anti-herói, ou seja, uma espécie de empatia e até identificação para com o vilão da história. Da primeira vez que ouvi isto achei que devia andar a ver os filmes errados ou então que não percebia nada disto e que nunca tinha sabido detectar o tal anti-herói. Qual não é o meu espanto quando ontem, no autocarro, com uma situação real e que se estava a passar ali, diante dos meus olhos, eu percebo exactamente o que se quer dizer com a tal expressão «simpatia para com o anti-herói». 



Entro no autocarro quase vazio. Sento-me no par de bancos imediatamente atrás da porta de saída. Está um calor abrasador e sei, pela minha experiência invernal, que as portas dos autocarros velhos estão muito mal isoladas e que sempre passa uma brisa. Uma ou duas paragens depois entra um conjunto de pessoas: um velhinho de boina na cabeça e sem dentes; uma senhora de meia idade com uma outra, que eu supus sua mãe, esta segunda de bengala e a precisar da ajuda da filha para circular dentro do autocarro; e uma terceira senhora, esta mais nova que as outras duas e que se sentou no banco imediatamente à frente dos delas, percebi que se conheciam e iam à conversa, a passar o tempo (e o tempo custa tanto a passar dentro dos autocarros, quase tanto quanto custa quando estamos à sua espera). Reparei que o senhor, sentado à frente das restantes, mas de costas, estava constantemente virado para trás com uma cara tão amigável como se estivesse inserido na conversa, a ouvir atentamente e acenando, de vez em quando, com a cabeça. Quando as apanha uns segundos caladas, olha para a rapariga mais nova, directamente, e pergunta Tu não és filha da P.? e a senhora responde secamente que não, voltando logo à sua anterior conversa. O senhor insiste É que estive com ela há pouco na paragem e ela disse-me que a filha tinha sido atropelada., desta vez a senhora responde Ah, é a minha prima. Sou sobrinha da P. e retoma novamente a conversa. O senhor volta Pois, estava a achar estranho vê-la aqui. Mas vocês são parecidas. A outra não é tão gorda como a senhora, de resto são parecidas. Chegámos ao ponto crítico da conversa, para mim foi aqui que ele passou efectivamente a vilão. Sim, que estar a ouvir a conversa e a meter-se nela foi um indício, mas isto foi o pico. As mulheres não gostam nem se permitem ouvir estas coisas. Há formas mais delicadas de o dizer. E, apesar de o senhor estar já naquela idade que pode dizer o que pensa porque tem pouco a perder, caiu mal. As senhoras retomaram a conversa e assim foram o resto do caminho. O senhor voltou-se definitivamente, achava eu, para a frente. As duas mulheres mais velhas saíram do autocarro e a terceira tomou-lhes o lugar. Nunca saberei se por estar mais perto da porta e, como eu, procurar a escassa brisa, ou simplesmente para ficar mais longe daquele que era o seu inimigo do dia. Assim que a senhora fica sozinha, o velhinho vira-se novamente para trás e diz Desculpe-me a expressão, parecia-me mesmo ela. e foi aqui que eu percebi a «simpatia para com o anti-herói». Fiquei com pena daquele que há minutos tinha sido o mau da fita, senti compaixão e até um certo carinho. Tinham corrido já mais de dez minutos desde aquela frase fatal e o senhor continuava a pensar naquilo, percebeu a reacção da mulher (melhor do que tinha parecido a todos), disse aquilo de forma completamente inocente e teve a humildade de pedir desculpa. Sim, porque a boa educação cabe em todo o lado, em qualquer idade e, pelos vistos, até nos vilões.

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