salário mínimo

- Recebi hoje o cheque da reforma, tenho medo de ir levantá-lo sozinha, não queres vir comigo?
E eu vou, mesmo sabendo que tenho apenas dez anos e que se quiserem assaltá-la isso não faz qualquer diferença... Saímos cedo para sermos das primeiras a ser atendidas nos correios. Na noite anterior durmo lá em casa para facilitar todo o processo. Pequeno almoço: torradas com manteiga. 
Dinheiro na mão. Separamo-lo em bolsas diferentes, suponho que para salvaguarda, e guardamo-las em compartimentos diferentes da mala. Vamos agora ao mercado. Acho que nunca fiquei muito atenta ao que se passa por lá, não me lembro dos pregões ou dos cheiros (que eu sou perita em guardar). Subimos as escadas rolantes (sim, este mercado novo tem escadas rolantes)... Não, na verdade vamos pelas normais, ela sempre teve muito medo de escadas rolantes. Subimos as escadas tradicionais e vamos espreitar as banquinhas de roupa do primeiro andar. 
- Escolhe uma camisola, gostas desta? Leva. 
E lá venho eu para casa, toda contente, não só porque ganhei uma camisola mas porque hoje já fiz duas viagens de autocarro. Eu gosto de andar de autocarro, é diferente. A minha mãe leva-me sempre de carro. Ainda me lembro de quando ela andava a tirar a carta de condução, só não me lembro como era antes.
Chegámos a casa. Ajudo-a a levar os sacos de fruta e legumes frescos e depois sigo, rua a baixo, para casa. Já cheira a peixe grelhado, deve ser o almoço de hoje (é costume ao sábado).

E assim era, assim mesmo, quando ainda estavas suficientemente lúcida e eras suficientemente independente para gerires a tua vida. Fazias-me o almoço quando vinha da escola e tinhas um pastel de nata guardado para o meu lanche. Às vezes dormia em tua casa, a princípio contigo mas depois compraste uma cama de pessoa e meia (já disse que acho muito estúpida esta designação?) e deixámos de caber lá, nenhuma de nós é apenas meia pessoa. Então abrias o sofá e era aí que eu dormia, na sala. E adorava, podia ver televisão até adormecer. Acordava-se cedo em tua casa. A padeira apitava mesmo debaixo da tua janela, o peixeiro também mas o som era tão estranho que nem consigo chamar àquilo apito. Tinhas genica. E mau feitio, sim, esse não é de agora. 
Entretanto houve um clique qualquer no teu cérebro que foi degradando a tua capacidade de seres pessoa no seu todo, deixaste de poder andar sozinha e de saber tomar conta das coisas da tua vida. Foi nesse seguimento que aconteceu um dos dias mais tristes da minha vida e que lembro, com todo o pormenor, como se fosse hoje. Estavas sozinha comigo, as persianas estavam corridas e tu estavas no sofá do canto. Olhaste para mim, consciente e triste, e disseste "Eu estou muito doente... E vou morrer!". Tive de parar uns minutos, esperei que as minhas lágrimas se travassem, rezei em segundos para a minha voz não tremer e então disse o que pude, o que consegui, o que sabia, o que achei que podia ser útil para aquele momento (para ti e para mim própria). Seguramente, os membros mais novos da família já nem se lembram de ti quando vivias em grande, só se lembram desta tua fase, cabisbaixa e sem objectivos. Mas eu lembro. E ontem lembrei-me muito quando, no meio do meu zapping, apareceram na RTP as marchas populares. Não me lembro se gostavas verdadeiramente de as ver, mas sei que me fizeram lembrar de ti, quando eras tu!
Hoje, fui pagar a mensalidade do centro de dia e só consegui pensar que, apesar de tudo, é muito bom ainda te ter comigo. Desculpa todas as vezes que não temos paciência, mas às vezes, é difícil...

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