ângulo raso

O Bruno é o meu amigo de sempre. Costumava descer a rua e sentar-se no degrau de minha casa, à espera que eu saísse para irmos para a escola. Nunca tocou à campainha. 
Pelo caminho falávamos do jogo de futebol do dia anterior. Ele sempre pelo desporto, eu sempre pelo Benfica. Talvez tenhamos falado, uma ou duas vezes, dos nossos sonhos, mas éramos dois miúdos e vivíamos no agora.
O Bruno era a única pessoa a quem eu confiava os meus legos e o Eusébio, o peixe vermelho que tive durante anos e de quem o Bruno tomava conta sempre que eu ia de férias para a serra, para casa dos meus avós. 
Daquelas zangas mais sérias, acho que só tivemos uma. O Bruno andava embeiçado pela Joana, aquela manienta do 7ºC e passava mais tempo a rondá-la do que a qualquer outra coisa. Ficou muito zangado comigo quando lhe chamei de parvo porque a miúda não lhe ligava nenhuma e ele andava a fazer figura disso mesmo, de parvo.
Metemo-nos em muitas trapalhadas juntos, como quando, na noite das bruxas, decidimos uivar às janelas de todas as velhas viúvas da aldeia. Ou como quando decidimos fazer uma casa na árvore e levar para lá grande parte dos nossos pertences. 
Encobriamo-nos sempre um ao outro. Éramos túmulos cerrados a cadeado. A minha mãe nunca soube que fui que parti o jarrão da sala e a D. Elvira, a mãe do Bruno, ainda hoje acha que ele partiu a cabeça porque um rufia lá da escola lhe atirou um calhau. Na verdade, andávamos a trepar a um muro para roubar cerejas e o Bruno calculou mal a distância do salto.
Quando nasceu a Teresa, a irmã do Bruno, a nossa amizade sofreu. Não podíamos ir lá para casa que a bebé estava a dormir e ficámos condenados ao meu quarto minúsculo. Mas pouco tempo depois, tudo voltou ao normal.
Uma vez, no Carnaval, decidimos que íamos mascarar-nos de caixas de cartão. Pois nesse dia choveu do nascer ao pôr do sol, ainda não eram dez da manhã e os "fatos" já estava desfeitos.
No ano em que comemorámos o nosso décimo aniversário, ele em Agosto, eu em Setembro, decidimos que já éramos crescidos e, no Natal, doámos todos os nossos brinquedos a um orfanato. Talvez este seja o único segredo que nunca contei ao Bruno: não fui capaz de me desfazer do porco com chapéu de cozinheiro que andava de bicicleta se lhe déssemos corda (Desculpa,Bruno!).
Hoje estou aqui, sentado numa cadeira de napa com rodinhas, no escritório onde trabalho e quando rodopiei na cadeira lembrei-me do Bruno. Será que ele também faz isto no escriório onde trabalha? Será que ele trabalha num escritório? Apercebi-me que, provavelmente, uma das maiores mágoas que tenho é que mesmo lembrando-me de tudo e podendo contar estas histórias, nunca poderei apresentar o Bruno aos meus filhos. Porque nos perdemos um ao outro e nem o facebook nos encontra. Porque é que nunca o procurei? Porque tenho medo de encontrar um Bruno diferente e só gostar do miúdo gordo que ele foi.

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