Tesoura afiada com capa de veludo

(ou se quisermos, "Lobo disfarçado de cordeiro")




Quando cheguei, o quarto não era meu. O candeeiro frouxo em cima da secretária de metal tornava o espaço frio e alheio. Não me demorei a olhá-lo, ter reparado na moeda caída aos pés da cama foi uma sorte. Saí e percorri o resto do corredor, ao fundo a cozinha. Antiga, com azulejos que parecem de coleção e os tachos pendurados na chaminé, evocava os palacetes dos filmes. Só faltava a Aurora, de avental e touca na cabeça. Ah! e aquele vidro rachado também destoa.
Cada divisão da casa parecia ter sido tirada de uma época diferente. Concluí isto depois de entrar na casa de banho, decorada em bordeux e preto. Louças modernas e novas, um tapete felpudo, uma banheira grande e frascos de espumas de banho e óleos de massagens no parapeito da janela. 
O vidro fosco não me deixava ver muito, por isso abri a janela e percebi que a divisão que se encontrava imediatamente à direita da casa de banho tinha uma varanda. Saí meia desorientada, a esquerda e a direita sempre me baralharam. Abri a porta que me revelou a sala. Os sofás castanhos, em pele, em frente a um móvel onde outrora deve ter estado uma televisão. Um minibar no canto, os copos de pé pendurados e no chão uma raposa embalsamada, com os olhos muito abertos que, suspeito, me observava descaradamente. 
Nenhuma das divisões era grande, mas nenhuma era desconfortável, eram acolhedoras. Exceto o quarto. Voltei lá. Imaginei como ficaria se trocasse o candeeiro e me livrasse da secretária. Pensei que talvez umas molduras personalizassem a coisa. 
Habituar-me à ideia de viver num T1 no centro da idade não foi fácil. Eu, que sempre corri no monte alentejano onde cresci, não sei andar em passeios e atravessar a estrada em semáforos. Talvez um dia isso seja a minha desgraça.
Comecei a abrir as malas, não trouxe coisas suficientes para tornar o espaço mais meu. Não sei se algum dia trarei as coisas suficientes. Afinal, não se mete uma vida, um povo, uma cultura numa mala, sufocados por um fecho éclair. Aos poucos, talvez possa sentir-me em casa, mas sempre que abrir a porta, vou perceber que isto aqui cheira a tudo, menos a casa.

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