#04 - COMIDA

Viver na aldeia às vezes é uma chatice. Toda a gente nos conhece e isso tem tanto de bom como de mau. Ir ao café é o mesmo que comprar um jornal local. Não há cinema, não há centros comerciais (na minha nem sequer há minimercado!), não há caixas de multibanco nem farmácias. Os autocarros têm horários escassos e nem sempre vão para onde precisamos. Não há um restaurante, nem sítio onde ir comprar uma bilha de gás. Posso ir a pé a todo o lado mas não há grande sítio onde ir. Na minha aldeia já nem há escola primária. Mas vive-se bem aqui. É pacato! Sempre brinquei na rua, aprendi a andar de trotinete na estrada, corri atrás de galinhas e quando preciso de um limão, atravesso a estrada, estico a mão e apanho um. Não tenho uma casa grande, e por isso quando há festarola reunimo-nos no quintal. Isso implica toda uma questão logística que vai desde acartar todas as coisas necessárias para o sítio, até ter todos os vizinhos à janela a querer saber o que se passa. Vizinhos... Os vizinhos da aldeia deviam ter um nome diferente dos vizinhos da cidade, um nome diferente daqueles com quem só nos cruzamos no elevador e dizemos pouco mais do que "bom dia". Estes vizinhos são diferentes. Tenho uma que não sabe ler e, por isso, meia volta (caso não me apanhe na rua), toca-me a porta para lhe ligar o telemóvel ou lhe ler uma carta do hospital que chegou sem aviso.

Tem dias que tudo isto é muito chato, não minto. Tem dias que só queria morar onde ninguém me conhecesse. Mas depois lembro-me de todas as vezes que corri todas as casas a pedir "bolinhos e bolinhós", lembro-me de todas as vezes que bati à porta daquela senhora porque precisava de um arranjo rápido de costura, de todas vezes que subi às árvores para apanhar tangerinas e da quantidade de vezes que a minha mãe me chamava para jantar, era já lusco-fusco.

Ultimamente as coisas têm mudado. Nas pessoas e nas casas. Há gente nova, porque os antigos saíram e puseram a casa à venda ou arrendaram-na. E as casas também têm sofrido alterações, as pessoas começam a não se sujeitar e a exigir novas condições. Confesso que estas são as alterações que mais me custam. Não que não entenda, mas começam a toldar-me a memória e isso incomoda-me. Incomoda-me que em frente à casa da minha tia G. já não haja aquela ameixeira que tantas vezes trepei. Incomoda-me que o terraço da minha avó já não seja do cimento que me esmurrou os joelhos. Incomoda-me que a minha bisavó já não more na casa pequenina, engenhosamente dividida para que todos os filhos coubessem e que tinha um forno de lenha na cozinha.


Lembro-me particularmente dessa cozinha. Era o único sítio onde me era permitido entrar livremente e sem supervisão. "Lá para dentro não, que desarrumas tudo.". Era miúda, corria e tinha muita curiosidade e isso irritava-a. Uma cozinha pequenina, o fogão à esquerda, a fazer esquina com o lava-louça. Por baixo do lava-louça, um pedaço de tecido feito cortina tapava os tachos e travessas. Em frente à porta um armário para a louça e ao lado uma mesinha com uns banquitos. Atrás da porta, a escada que dava lá para dentro e no canto o forno de lenha.

Quando chegava da escola e via, encostada à parede, uma vassourinha feita de uma cana e umas folhas de couve, era certo que naquele dia havia broa acabadinha de cozer. Com isso, vinha uma série de outras coisas: a minha avó com um lenço atado na cabeça e a cara muito vermelha do calor do forno; a minha bisavó, nesse dia, não saía mais de casa para não apanhar frio; e para o lanche uma de duas coisas, ou uma fatia de broa quente com marmelada (ou uma outra coisa de barrar) ou um bolinho doce. Este bolinho era o miminho da minha avó para os netos, uma espécie de broa, mais pequenina a que ela juntava açúcar ou erva doce. Para mim, quanto mais mal cozida melhor e quando o açúcar ficava em torrão, ai!, isso é que era.

Com todas as mudanças que têm havido por lá, essa cozinha desapareceu, toda aquela casa com divisões pequeninas desapareceu. E tudo deu lugar a uma extensão de uma outra casa. Durante uns anos, acabou-se a broa quente, pelo menos daquela que a minha avó fazia. Felizmente, ela sentiu-lhe tanto a falta como eu. E arranjou maneira de construir um forno no quintal. Adaptou o espaço da adega e o que despendia para criar animais. Organizou melhor a coisa e agora ganhamos todos mais com a cozinha do forno. À sexta feira, de quinze em quinze dias, junta-se à minha tia e coze a nossa broa.

Umas vezes coze broa, outras pão, umas vezes com chouriço, outras com sardinha, pouco importa, o resultado final sabe-me sempre ao mesmo, à "broa da avó". E eu fico tão grata por isso!

Comentários

Anónimo disse…
Bom sentir a memória viva, com aromas e paladares dos nossos afectos.
Miguel