#05 - SONS

Tornou-se comum dizer que "A melhor rede social é uma mesa rodeada de amigos". E ainda que isto possa parecer uma frase feita tem, como todas, um fundo grande de verdade. Continua a ser impagável o gargalhar de quem gostamos e a mesa nunca deixou de ser o melhor palco para um grande momento de convívio. Não foi à toa que se criou o hábito de comemorar as coisas que de bom nos aconteceram com um jantar. Rodearmo-nos de pessoas boas, em torno de comida preparada com carinho e um vinho escolhido a preceito tem tudo para ser um momento de festa.

Fazemos jantares de aniversário, jantares de natal, jantares de passagem de ano, fazemos almoços para celebrar negócios, almoçamos em grande galhofa com os nossos amigos na escola, partilhamos uma mesa cheia de marmitas com os nossos colegas de trabalho, fazemos piqueniques no verão, na primavera, lanchamos com os nossos amigos para pôr a conversa em dia... Pegamos nos momentos bons e fazemos deles uma refeição. Na maior parte das vezes importa pouco se estamos a comer caviar, frango de churrasco ou rissóis do Continente. Por vezes, a conversa está tão prazerosa que até nos esquecemos de comer. Outras vezes, a conversa distrai-nos e esquecemo-nos do que já bebemos (mas o corpo encarrega-se de nos lembrar quando nos levantamos).



Jantar num restaurante boicota-nos os sentidos. O barulho à volta, o frenesim dos empregados de bandeja na mão, as pessoas que entram mais tarde ou saem mais cedo do que nós, tudo serve para nos distrairmos. As mesas compridas impedem-nos de ver toda a gente e acabamos confinados a quatro pessoas, aquelas que conseguimos ver e em relação às quais temos uma distância suficientemente curta para manter uma conversa. Isto se estivermos numa ponta. Se nos calhar a sorte de ficar no meio, passamos toda a noite a dançar o vira com a cabeça. "Ouve esta conversa", "Responde àquela pergunta", "Passa o pão para este lado", "Leva para lá o vinho". E chega-se ao fim com uma zoeira descomunal nos ouvidos, mal provámos a comida, mal sentimos o fresco da bebida e daqui a dois dias já mal nos lembramos porque não fomos capazes de prestar atenção ao que quer que seja.

É por isto que eu prefiro jantar em casa, de preferência com uma mesa no meio e as pessoas espalhadas pela sala. Umas no sofá, outras nas cadeiras, mais uns quantos de pé. Comemos duas garfadas e circulamos. E, mais minuto menos minuto, vamo-nos juntando à conversa que produz mais risos e acabamos todos numa roda única a jogar conversa fora.

Nestes jantares podemos dar azo a todos os nossos sentidos. Mas sabem qual o que, para mim, mais se destaca? A audição. Ainda que o meu sentido mais apurado e aquele que me dá mais gozo seja o olfato. Nestes jantares o bom é ouvir. Ouvir a tarte estaladiça que quebra quando lhe chegamos a faca, ouvir a campainha quando alguém está atrasado e estamos ansiosos por que se junte ao grupo, ouvir o trincar das batatas fritas, ouvir o tilintar dos copos aquando dos brindes, ouvir o gorgolhar do vinho... E este som... Aqueles segundos em que o vinho sai da garrafa e beija o copo... Se olharmos fixamente, parece que o momento se eterniza. E aquele barulho suave que se segue ao saltar da rolha é a concretização do facto de estarmos juntos e a celebrar.



Hoje, eu estou grata por todas as garrafas que estão ainda por abrir, por todos os copos que estão ainda por encher e por todas as vezes que vou ainda poder ouvir o gorgolhar do vinho a antecipar um brinde.

Comentários

Anónimo disse…
... "Rodearmo-nos de pessoas boas, em torno de comida preparada com carinho e um vinho escolhido a preceito tem tudo para ser um momento de festa.(...)"
Partilho contigo o prazer de saborear os momentos com "pessoas boas", com as quais aprendemos sobre a vida.

Deixo-te um poema para o teu olhar continue a sorrir.

Quotidiano (Reflexão)
Por exemplo, as coisas que faltam neste lugar:
uma enxada para que as mãos não toquem na terra,
um ninho de pardais no canto da relha,
para que um ruído de asas se possa abrigar,
um pedaço de verde no monte que ainda vejo,
por detrás dos prédios que invadem tudo.

Mas se estas coisas estivessem aqui,
também faria falta um copo de água para ver,
através do vidro, um horizonte desfocado;
e ainda os restos de madeira com que,
no inverno, é costume atiçar o fogo
e a imaginação que ele consome.

Como se tudo estivesse no lugar,
pronto para ser usado na data prevista,
sento-me à janela, e fixo a única coisa
que não se move:
o gato, hipnotizado por um olhar
que só ele pressente.

Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas"

Bj
Miguel