Dos pés à cabeça, TEU

Na televisão, de manhã, começam as notícias com um cronómetro em contra-tempo. É aí que aparecem as novidades do dia. Escândalos, explosões, mais um aumento do iva, desporto e uns fracos minutos culturais. A mesma rotina, no entanto, os repórteres limitam-se a mudar os títulos, as palavras, os locais…

A população fica encantada e informada, excepto eu. Eu já não recebo notícias tuas há mais de um mês. Dizias que ligavas quando chegasses, mas nem uma mensagem foste capaz de mandar. Eu sabia que esta distância só ia provar que tu nunca me amaste. Era evidente que ias esquecer-te de mim assim que deixasses de me ver, mas tantas vezes negaste que me fizeste acreditar que podia ser possível esse sentimento que eu idealizei.

Eu lá no fundo sabia! Nunca respondeste às minhas cartas, não ligavas às mensagens, era raro atenderes o telefone. Nunca quiseste que tirássemos uma foto juntos e recusavas dar-me a mão em sítios públicos. Mas perante tudo isto, só uma dúvida me atormenta: “Porque estiveste tu comigo?”. Eu não sou especialmente bonito nem musculado. Não tenho dinheiro, nunca te dei grandes presentes. Fico sem perceber. Foi por pena? Não, não acredito. Não és pessoa para ter pena de alguém.

Na minha cabeça pairam todas estas dúvidas. Tu não ligas, não dás sinais de vida, não dizes se estás bem ou mal, simplesmente não te lembras da minha existência. E eu aqui, feito parvo, insisto em esperar junto do telefone, em correr de cada vez que a campainha toca com a esperança de que te tenhas arrependido de ir embora. Já desisti de tentar contactar-te, era esforço inútil. Quando não queres ser encontrada, não te encontro mesmo.

Mas continuo a morrer de amores por ti e é isso que me corrói, que me deixa perdido neste mundo de idiotas.

Já deixei de sair à noite, mas continuo a deitar-me tarde. Fico a pairar aqui pela casa. Levanto-me tarde e a más horas, tomo o pequeno-almoço à hora em que devia estar a almoçar e lá vai mais uma manhã de trabalho perdida. Quando finalmente ganho coragem para me vestir, saio para tomar café e olho mil e uma vezes para tudo quanto é sítio, na ânsia de te ver e nada. Minutos passados e convenço-me de que tenho um artigo para escrever, levanto-me da esplanada e venho, em passo lento, direito ao computador. Porém, quando me sento na cadeira de napa preta, nada me ocorre. E assim se passa mais uma tarde sem nada feito. Tem sido esta a rotina desde que foste embora. Nesta casa, este mês, não entrou um único tostão. Salva-me o facto de ter comido pouco durante este tempo e por isso continuar com a dispensa cheia. O editor do jornal já me ligou umas quantas vezes para saber que se passa mas nem tenho coragem para atender. Coitado do senhor! Já deve achar que estou morto.

E tudo isto por tua causa, por culpa da tua ausência e da falta que me fazes. Motivaste-me, ainda que inconscientemente, a lutar todos os dias por aquilo que quero mas deixaste-me aqui, de mãos e pés atados, sem ter por onde me mexer. Adorava poder continuar a lutar por ti e por todos aqueles momentos, os NOSSOS momentos.

Lembras-te quando andámos juntos a cavalo, naquela herdade do meu tio? Recordo-me perfeitamente da melodia harmoniosa que o teu cabelo cantou com o vento. E que dia esse… Percebi, pela primeira vez, que estava realmente apaixonado por ti.

Eles bem me avisavam. Diziam-me que já eras batida, que eras daquelas que pára por pouco tempo no mesmo sítio, daqueles presentes cujo conteúdo é nulo mas o embrulho brilhante. Nunca quis saber, sempre te defendi. E para quê? Para agora passar por isto e ouvi-los dizer-me que me avisaram. Enganaste-me bem!


Jovem, do sexo masculino, colaborador deste jornal, encontrado morto, junto ao rio. Supõe-se que a causa da morte seja afogamento, mas espera-se resultado da autópsia. Consigo transportava apenas uma garrafa de vidro que continha no seu interior uma carta e uma fotografia que estão agora na posse da Polícia Judiciária.

Tiago Santos e Catarina Martins

Comentários

Anónimo disse…
AMEI, voces são grandes
maria
Anónimo disse…
Fiquei sem palavras .

Escrevam mais que eu cá estarei para ler e apreciar .
Amei , mesmo .
Bárbara
Filipa Teixeira disse…
Nem sei o que dizer, está... EXCELENTE!!
Muito boa escrita, mesmo!
Filipa Teixeira disse…
Isso significa, para mim, que consegui transmitir o que sinto, mais do que o literal, agora sinto-me 'a maior'.
Concordo plenamente, às vezes sinto-me cega 'duas vezes' numa no sentido figurado e noutra no sentido literal. Diria que levo facadas porque quero e levo também as que dispenso. Mas pelos menos o sentido figurado temos a obrigação de intervir rapidamente ou deixa-mo-nos engolir pela própria ignorância...