(4) Um até já
Amanhã vou buscar-te à hora de sempre. Desces com os sacos do lixo e fazes-me sinal para esperar uns minutos.
Quando entras no carro dás-me aquele teu beijo curto, quente e doce. Era
esta a nossa “rotina” de quase todos os dias. Mas era uma rotina agradável em
que o significado aborrecido da palavra em nada correspondia à realidade.
Seguimos em direcção à praia para aquele que seria um dos últimos momentos que
viveríamos juntos, mal eu sabia. Sempre gostaste de um bom passeio à beira mar
ao final da tarde, será que te podes recordar? Que é verdade que existe vida
depois da…tu sabes? Bem, de qualquer forma, senti-te mais cansada que o
habitual naquele dia. Lembro-me como se fosse hoje, mesmo já tendo passado
vinte e cinco anos desde que partiste. Caminhámos apenas durante cinco minutos
até me pedires para te sentares, que precisavas de descansar. Já há alguns
meses que te sentia em baixo, mas isso tinha-se tornado mais evidente nas últimas
semanas. Dizias-me que era do trabalho novo que tinhas conseguido, que tinhas
passado demasiado tempo sem fazer nada e já não estavas habituada àquele ritmo.
Meu Deus, como pude ser tão estúpido até àquele dia e não perceber que se
passava algo muito mais grave? Sentaste-te rapidamente e respiravas como se
tivesses acabado de correr a maratona. Nesse dia eu percebi que havia algo de
errado contigo.
- O que se passa? –
Questionei-te.
- Miguel, preciso contar-te
uma coisa. Não posso adiar mais. – O sofrimento transparecia no teu olhar de
uma forma que nunca antes vira. Não falei. Conhecia-te o suficiente para saber
que querias falar sem ser interrompida – Eu não te contei a verdade sabes? Em
relação ao motivo de andar cansada. Nem sequer trabalho, foi uma invenção minha
que nunca pensei conseguir manter durante tanto tempo. Sei que podes ficar
chateado comigo mas quero que entendas que o fiz para te proteger. Estou
doente, Miguel. E resta-me muito pouco tempo de vida.
Foram as únicas palavras que
disseste e não choraste, apesar de o teu sofrimento ser visível. Só mais tarde compreendi
porque sofrias. Não era por te restar pouco tempo. Não era por teres apenas
vinte anos e achares injusto o que te estava a acontecer. Tu sofrias por mim.
Sofrias por saberes que eu ia sofrer. E estavas certa. Naquele momento,
faltaram-me as palavras. Abracei-me a ti e chorei compulsivamente. Como fui
idiota. Tu a dizeres-me na cara que ias morrer sem uma única lágrima deixares
cair e eu em vez de conversar contigo, dar-te força e esperança, transformei-me
numa criança que acaba de perder o seu brinquedo favorito. Talvez esta
comparação nem tenha lógica mas sabes que nunca fui bom nestas coisas.
Nos últimos vinte e cinco anos
tudo mudou. Não importa falar do momento em que te perdi, aliás, penso que o
reprimi tanto que às vezes mal o recordo. Escrevo apenas para ti, para te dizer
que apesar de ter continuado com a minha vida, de ter a meu lado alguém que amo
e ter dois filhos maravilhosos, nunca te esqueci. Nem nunca poderei esquecer.
Todos cá em casa conhecem a tua estória e todos dizem que eras linda. E eras. Sei
que te terias tornado numa mulher estupenda. Acabei por acreditar no que tu
acreditavas também. Nas nossas últimas conversas dizias-me sempre “Miguel,
todos temos uma missão. A minha foi conhecer-te e transformar-te num homem
melhor. E sei que um dia nos vamos reencontrar outra vez. Eu sei”. De facto,
devo-te muito. Mudaste-me mesmo. Para melhor. Muito melhor. Também sabias que
não era muito espiritual mas nos dias que se seguiram à tua morte eu senti
constantemente a tua presença. Era como se estivesses a cuidar de mim. É por
isso que te digo, até já. Um dia vamos reencontrar-nos.
por Sofia Ferreira
Be my voice, write the end!
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