(9) O perfume


Amanhã vou buscar-te à hora de sempre. Desces com os sacos do lixo e fazes-me sinal para esperar uns minutos. Quando entras no carro dás-me aquele teu beijo curto, quente e doce. É assim que me lembro de ti. Mesmo com o teu ar cansado, de sempre, o dia ficava bem melhor quando me ligavas para ir ter contigo. Sorria para o telemóvel feito um idiota porque as tuas mensagens acabavam com um "Não demores. O meu coração quer reacender a chama que ficou sem força quando, ontem, me deste o último beijo de boa noite. Preciso de ti".
Sentia-me poderoso. Tinha em mim um sentimento que me consumia e que me deixava, permanentemente, feliz.
Naquela noite, enquanto descias, tentava pensar em algo diferente, marcante. Queria levar-te ao teu lugar preferido que sempre me havíeis contado mas era impossível. Quem era eu que nem um simples desejo conseguia concretizar pela mulher que me fez acreditar que os sonhos são realidade basta querermos?
Os minutos passaram. Tu chegaste. Estavas diferente. Tinhas o mesmo aroma agarrado a ti. Estavas a usar o perfume que te tinha dado no teu aniversário. Senti-me bem, éramos um nós, naquela altura.
- Chegaste rápido - disse ela - isso era tudo saudades?
O meu peito apertou. Respondi-lhe com um beijo e sorri. De seguida sussurrei-lhe:
- Sabes que tudo são saudades. Tudo são momentos que passam e ficam. Só gostava de dar continuidade a tudo o que me faz feliz. 
Ela retribuiu-me o sorriso. Era perfeito como o fazia. Não precisava de dizer mais nada. Bastava que ela sorrisse para mim.
Parecia tudo verdadeiro. A essência das nossas almas parecia guiar-nos a um final feliz, igual àqueles que só acontecem nos filmes. Mas a verdade é que a realidade não é igual aos filmes. Temos de nos manter sempre atentos, sem baixar a guarda, num enredo onde somos personagens principais. Tudo terminou quando deixaste de usar o perfume e, na tua última mensagem escreveste: "Já não sinto o aroma de sempre. Perdeu-se a real essência que nos unia e que nos diferenciava: a minha paixão interminável e o teu amor incessante". 
Passados 10 anos recordo-me da nossa rotina. Passávamos a noite fugidos, como dois loucos. Ficávamos juntos e o meu corpo aquecia o teu nas noites de Inverno. Uma vez disseste-me: "Tenho frio. Abraça-me". Não te apercebeste mas o meu coração palpitou mais forte e, instantaneamente, fiz o que me pediste. 
Éramos jovens. Tinhas sede de paixão e eu de amar. Foi isso que nos separou. Tu eras perfeita, madura e inteligente. Mas tinhas um defeito: Eras frágil. Partias-te em cacos sempre que dizia um "não". Tentava evitá-los mas a minha infantilidade, da altura, fez-me perder-te. 
O que ganhei com o teu ar sempre doce e disponível? Bem, acredito que naquela noite em que terminamos, pela minha infantilidade, tu te tornaste, finalmente, uma mulher. Deixaste de ser uma menina de porcelana e começaste a tomar decisões com a cabeça e não com o coração. Transformei-te, involuntariamente. Não me arrependo mas, passados 10 anos, fazia as coisas de maneira diferente.
Nunca me desculpaste. E é essa a minha maior mágoa. Sempre me disseste que tudo estava bem e para eu esquecer. Tinha sido um erro. 
A verdade é que o olhar que me dirigias na altura, apaixonante e verdadeiro, é bem diferente daquele que me lançaste na semana passada quando passei pelo prédio antigo e monótono. É frio e com uma ponta de sabor agridoce.
Apercebi-me de que a tua rotina continua igual. Desces com os sacos do lixo. A única diferença é que, enquanto imagino, do outro lado da rua o teu perfume ao entrar no meu carro há 10 anos, levas agora uma criança pela mão e entras num carro onde a personagem principal deixei de ser eu para passar a ser o teu novo louco amor.
Não me sinto triste, apenas acabado. Tudo o que idealizamos, na inocência da juventude, realizaste com outra pessoa. E eu, nesta droga da vida, nunca consegui seguir em frente e é por isso, que todos os anos, no dia do teu aniversário, te deixo o mesmo perfume de sempre na esperança de que isso faça com que não te esqueças do que fomos e da verdade que foi o nosso sentimento.


por Rui Fernandes
Be my voice, write the end!

Comentários

Joana disse…
Completamente fantástico!