Dia 3 - CUIDAR

Cuidar: tratar de, interessar-se por.

Sempre achei que não seria a pessoa indicada para cuidar de velhos (não acho que “velho” seja ofensivo e “idoso” elegante), e por isso sempre admirei quem o faz com gosto e cuidado. Confesso, por muito feio que isto pareça, que nunca me imaginei a mudar fraldas ou a dar comida à boca mesmo que dos meus se tratasse. Há cerca de um ano a minha postura mudou. Percebi que o amor que sentimos pelas pessoas se sobrepõe a todos os nossos receios ou reticências. Desde então que sou visita assídua no lar, desde então que me culpo quando não posso ir, desde então que deixei de lamentar as faculdades que ela perdeu e aprendi a valorizar cada melhora que apresenta, os abraços lúcidos que me dá quando chego, a preocupação de me desejar boa viagem ou de rezar para que eu tenha um bom emprego. É por isso que não me doem os braços quando tenho quase de carregá-la até ao carro para a levar ao médico.
Mudou-me quando era miúda, cuidava de mim e ia enriquecendo a minha personalidade; e agora, que ela é que parece uma miúda e me fez entender que ser velho é algo tão normal e significativo como ser noutra qualquer fase da vida. Já dou por mim a dar beijinhos a outras velhinhas do lar que me confundem com as suas netas ou com atletas da seleção e sou uma pessoa melhor por isso, sei-o.
Há mais velhos na minha vida e ainda bem. A minha bisavó é a velha para quem muitas vezes não tenho paciência, diz inúmeras vezes a mesma coisa, reclama de tudo, tem sempre mil doenças, frio, muito frio, depois calor. Fala das novelas e dos reality shows como se a vida da humanidade dependesse disso. Resmunga muito. Foi uma mulher e peras, conta muitas vezes. Trabalhou muito. Tem histórias mirabolantes mas nem sempre as conta.
Esta semana quase regressava a Lisboa sem me despedir dela. Chamou-me, entrei. “Ó nina, leva meia dúzia destas bolachas, são tão boas! Ora prova!”. Eu toda apressada, sem tempo, disse-lhe que tinha a mala cheia, que não me cabia mais nada. Então pegou num monte delas, embrulhou-as num guardanapo e disse “Leva-as ao pé de ti, vais comendo pelo caminho”. Trouxe. E não é que o raio das bolachas são mesmo boas? Fiquei a pensar no assunto e comovi-me.

Às vezes, tudo o que as pessoas têm para nos dar são meia dúzia de bolachas. Bolachas recheadas de amor e polvilhadas com carinho e preocupação. Nem sempre vemos mais do que farinha e açúcar, talvez esse seja o nosso problema. Talvez não saibamos ver para além do óbvio e talvez seja isso que nos falta. Está na altura de aprender ler gestos e olhares. Hoje é dia de comer bolachas.

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